Comecei pelo “Politeama”, uma casa centenária. Foi inaugurada em 1913 por iniciativa de Luís António Pereira, português de torna-viagem, diz-se que fez fortuna no Brasil e que, amante de Teatro e de Música, quis assim dotar a cidade com uma nova sala de espectáculos. Desde 1992 que é ali Filipe La Féria e a sua companhia oferecendo-nos todo um trabalho de grande qualidade, particularmente ao nível do musical, que bem pode rivalizar com o que de melhor se faz na estranja. Fui para ver “Eu saio na próxima. E você?”, com João Baião e Marina Mota. Até aqui nada de extraordinário, gosto de Teatro e de bons actores, já tinha visto a peça onde ambos se desunham com assombrosa energia e talento durante duas horas, desfiando as memórias de uma vida a dois e de um país que de oprimido passou a livre, sendo que esse bem maior nunca seja um dado adquirido, alerta temos de estar, ainda mais agora que um pouco por todo o lado os populistas, sejam da direita ou da esquerda, ganham terreno à custa do desalento e da desesperança de quem vê goradas expectativas e promessas por parte de quem através do conluio, corrupção e outras indignidades (se) governa. Só que desta fui ao teatro com mais de uma trintena de senhoras, das que habitualmente se sentam nas bancadas do programa da manhã. Foi uma tarde de risos, gargalhadas e emoções, que felizmente registámos para, uma manhã destas, partilharmos no programa.
Dali fui jantar, não sem antes ter ficado à porta do teatro, por uma boa meia hora, rodeado dos mimos com que habitualmente sou tratado: beijos, abraços e as inevitáveis “selfies”. Fico sempre sem graça quando dizem gostar de mim, porém, cada pessoa que o diz, ou demonstra, não imagina a alegria que me dá por perceber que o homem em que me vou fazendo está no caminho certo, o da credibilidade. Optei pelo “Gambrinus”, um clássico da restauração lisboeta. Desta vez amesendei-me, que habitualmente fico-me pela barra, para uma refeição mais ligeira, e onde somos tratados com o mesmo desvelo e simpatia. Tinha tempo para jantar nas calmas, que o concerto da Raquel só começaria duas horas depois. Recuamos oitenta anos que a bem dizer tudo se mantém na mesma, até a ementa mostra que há poucas alterações culinárias, joga-se pelo seguro de uma confecção cuidada, a partir do melhor produto, servido com eficaz e elegante competência. Não é de estranhar que estivesse cheio e já agora, em jeito de mera curiosidade, diga-se que atrás de mim jantava, discretamente, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres.
Que noitada! – é mesmo, para quem diariamente se “deita com as galinhas”, mas não podia perder a oportunidade de assistir a um concerto da Raquel Tavares no Coliseu, “a sala da sua vida”, é a própria a dizê-lo.
Gosto muito da Raquel, da sua voz poderosa e do seu enorme talento, se bem que o nosso relacionamento não tenha começado da melhor maneira. Achava-a pespineta e irritava-me a intransigência com que defendia os seus pontos de vista, sobretudo no respeitante ao fado, ao acreditar que o seu caminho era o único certo para defender esse lamento de alma que é tão nosso, nunca se pondo em causa. Curioso é constatar a minha então implicância, quando também eu levei anos a perceber que não há verdades únicas e que o maior dos desafios é esse de tudo questionarmos, a começar por nós próprios. Já conversámos sobre tudo isto e rimos da nossa implacabilidade infantil (mais grave em mim, dado que já na altura tinha idade para ter juízo!). Hoje a Raquel não recusa outras estéticas musicais, sem nunca atraiçoar a sua alma verdadeiramente fadista, e isso viu-se ontem no extraordinário espectáculo que nos ofereceu, acompanhada pelo seus músicos de sempre e pela Sinfonietta de Lisboa. Ali ficou no palco, em cada tema, inteira, feita de alma, nervo, coração. Por isso o Coliseu, completamente esgotado, se rendeu logo ao primeiro fado, numa emocionada declaração: “Como é grande o nosso amor por você!”.