Há círculos que se fecham!

Há coisas que me acontecem no presente que parecem buscar ligação ao passado, como que para atar uma ponta solta ou fechar um círculo. Afinal não é Isabel Allende quem o diz: “se vivermos o suficiente todos os círculos se fecharão”?

A primeira vez que vi dançar o “Bolero”, de Ravel, foi no cinema, no filme “Les uns et les autres” de Claude Lelouch, andava eu pelos vinte e poucos, e era o portenho Jorge Donn quem protagonizava a cena num bailado intenso e arrebatador. Foi quando fixei o nome do coreógrafo: Maurice, tal como o compositor, de apelido Béjart. Soube então que tinha vindo a Portugal em plena ditadura com a sua companhia para uma série de espectáculos com “Romeu e Julieta”. Estávamos em 1968, é o próprio quem o recorda , no seu livro de memórias “Un instant dans la vie d’autrui”, que resgatei agora da biblioteca cá de casa, comprado que foi há quase quarenta anos (compro livros compulsivamente sabendo que mesmo que os não leia na hora dia haverá em que me hão-de valer):

“Chegámos a Lisboa numa tarde de Junho e na manhã seguinte, ao sair do hotel, percebi que havia uma certa efervescência junto a um quiosque de venda de jornais. As manchetes eram claras, Robert Kennedy tinha sido assassinado. Ainda que não sentisse particular admiração pela política de qualquer um dos irmãos Kennedy, a notícia não deixou de me impressionar. Nessa noite de estreia a sala estava cheia e na pateia viam-se muitos jovens que sentiram o final do bailado (o disparar das metralhadoras, o ribombar dos bombardeamentos e gritos de “façam amor e não guerra”) como um verdadeiro murro no estômago. Portugal estava em guerra em Angola e outras colónias, Salazar era o senhor todo poderoso. O ambiente era electrizante. Subi ao palco para, junto com toda a companhia, receber a ovação com que havíamos sido brindados e sem o ter premeditado pedi então que se fizesse um minuto de silêncio pela morte de Robert kennedy, vítima do fascismo internacional. A sala emudeceu, porém, quando regressámos aos camarins já ela se agitava num canto, que nos disseram ser revolucionário e por isso proibido. Após o espectáculo, seguiu-se uma recepção na Embaixada da Bélgica onde me deparei com um ambiente bizarro, angustiante mesmo, contrastante em absoluto com o caloroso acolhimento que tivemos durante o espectáculo”.

No dia seguinte Maurice Béjart seria lavado às sinistras instalações da PIDE para ser interrogado, acabando por ser conduzido à fronteira, sendo
assim expulso do país, como subversivo e indesejável. Voltaria em 1974, a um Portugal já livre, com o mesmo bailado e não seria última vez.

Quando percebi que o Béjart Ballet de Lausanne estaria na Ópera de Versalhes decidi que seria ali que, finalmente, veria dançar o “Bolero” ao vivo, ao mesmo tempo que me sentaria pela primeira vez na Ópera do Palácio, tão desejada por Luís XIV mas só terminada no reinado do Luís que se lhe seguiu, ainda a tempo do casamento do Delfim com Maria Antonieta. Que emoção escutar a música de Maurice Ravel num crescendo orquestral delirante e vê-la dançada de forma demoníaca e sensual. A noite reservar-me-ia ainda uma inesquecível surpresa, uma outra coreografia de Béjart para uma peça a partir das canções de Brel e Bárbara. Logo eu que não sou de olhar para o passado para não estar de costas para o futuro dei por mim a lembrar a banda sonora de toda a minha adolescência onde a cultura francesa dominava e as palavras de Jacques Brel e da dama de negro me desinquietavam.

Falta-me agora assistir a um concerto na Capela Real do Palácio, mas nāo pode ser para já que tem dois meses que se iniciaram os trabalhos de restauro do telhado e a empreitada ainda vai levar um ano ou mais, mas eu sei esperar e nos entretantos já tenho bilhetes para “Don Carlo” de Verdi (adoro!!) na Ópera de Frankfurt, para o Natal que não tarda.

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