Encontrei esta foto num velho álbum e logo me assaltaram mil lembranças a seu propósito, que se há fotografia com estórias para contar esta é uma delas e já com trinta e cinco anos. Ah, pois, que disso lembro-me eu: estávamos em 1980, celebravam-se os quatrocentos anos da morte do nosso poeta maior e “Que farei com este livro?” subia à cena pela pena de José Saramago, o Nobel da nossa literatura, e pela mão de Joaquim Benite. Não foi aquela a primeira peça de teatro escrita por Saramago, já antes havia concebido “A Noite”, respondendo assim ao desafio que lhe foi lançado por Luzia Maria Martins, directora da companhia do Teatro Estúdio de Lisboa. Não foi, porém, esta companhia a representá-la, mas sim a de Campolide, já sediada em Almada e antes de tomar o nome da cidade, numa encenação também de Joaquim Benite, o mesmo que lhe encomenda a peça sobre Camões ou, melhor, sobre um período da sua vida, durante o qual o poeta tentou fazer publicar a sua obra “Os Lusíadas”. Camões representa aqui o paradigma do artista menosprezado, independentemente da época.
José Saramago acompanhou de perto os ensaios da sua peça, bem como as ideias para o cenário e figurinos da autoria de João Vieira, celebrado artista plástico e acrescente-se, por mera curiosidade, pai do cantor Manuel João Vieira. Tê-lo na plateia, vivendo particularmente parte do processo da criação, era estimulante para o elenco, onde pontificavam nomes grandes da cena portuguesa, como Canto e Castro no protagonista, Carlos Santos, no papel de Damião de Gois, António Assunção e Teresa Gafeira.
Porque sei de tudo isto? – perguntar-me-á. Ora, se eu era ali e logo em primeiro plano. Não, não que o meu papel fosse assim de tanta importância, é mesmo caso para dizer que “entrava mudo e saía calado”, mas nas duas cenas em que participava, sem dizer uma palavra que fosse, as atenções para mim se viravam pelo facto de representar D.Sebastião (eis-me na foto de calção e gibão de cor púrpura, a cor dos poderosos, e tez macilenta, entre D.Catarina, interpretada pela minha querida Ema Paul, mulher de Canto e Castro, e o Cardeal D.Henrique, trabalho de Alfredo Sobreira), simbolizando o poder que despreza a Cultura e seus artífices, porquanto revolucionários podem ser. Veja-se como nada mudou tantos anos depois!
O espectáculo foi um êxito, de público e de crítica, premiando-se assim o trabalho de quantos nele intervieram e em especial o do encenador. Recordo em particular um seu “desarricanço”, como se tivesse sido ontem. Estávamos na fase de ensaios gerais, em vésperas da estreia, e Joaquim Benite achava que faltava algo com mais impacto cénico, com que o primeiro acto terminasse. A cena era a a da interpelação de Camões ao Rei ( eu mesmo!) em pleno paço e perante a corte, com o régio cortejo, desdenhosamente, a seguir o seu caminho. Camões queda-se em palco, só, alquebrado, na miséria, mantendo a certeza que “Os Lusíadas” eram o seu único tesouro. Foi então que o Joaquim Benite, tudo supervisionando da plateia e num rasgo de génio, pediu ao contra-regra que subisse à teia e de lá atirasse uma resma de folhas brancas de papel , sobre o actor. O efeito revelou-se de grande impacto dramático e logo ficou decidido que assim ficaria dali em diante, como cena final do primeiro acto. Na estreia, a mais empolgante, mas também enervante, das exibições, que é quando todo um esforço de meses está a ser avaliado pela primeira vez, o final do primeiro acto foi celebrado com grande euforia pelo público presente, que esgotava a sala da Academia Almadense . Os críticos mais tarde haveriam também de enaltecer a simbologia da cena: a humilhação de Camões, perante a indigência cultural de quem governava, enquanto o país se esboroava entre a Inquisição e a peste dizimando milhares de vidas e almas.
Canto e Castro, Ema Paul, António Assunção, José Saramago, Joaquim Benite, João Vieira …. já não estão entre nós, mas continuam a enriquecer o mundo onde escolhi viver. Olhar esta fotografia é honrá-los, porque tenho memória!. E que esta não me atraiçoe em momentos de decisão, como esse que está por dias, o de votar. Tenho que, tal como há quatrocentos anos, são os valores da Cultura que nos tornam melhores, face à ditadura do mediatismo social e do que é frívolo e boçal.
As pessoas só morrem quando morrer a última pessoa que se lembra delas 🙂
Bom dia Manel.
O texto está muito bom, mas acho que encontrei um erro gráfico logo no início. É que histórias é com h, e o senhor escreveu “estórias”. Foi apenas uma observação.
De resto, tem toda a razão.
Cumprimentos
Olá Ester
A História está cheia de estórias. Não foi engano meu, está correcto. Um beijo
Obrigada por compartilhar o seu blogue que é rico em tudo e que eu gosto muito. Obrigada Manuel Luís Goucha por Existir e honrar pessoas que já partiram que nos deixaram muitas saudades e que fizerem muito pelo nosso País. Um grande Abraço com muita ternura
” O PODER DA CULTURA” é um dom de Manuel Luis Goucha!
Bem haja por esta “dose ” de Cultura!
E mesmo quedo e mudo está muito bem ☺
Beijo e abraço
Isabel Santos
“O PODER DA CULTURA ” … e está tudo dito, vindo de Manuel Luis Goucha !
Bem haja por esta “dose” de Cultura ☺
Apesar de quedo e mudo esteve muito bem!
Beijo e abraço