Gravámos o programa que seria emitido naquele Natal de 1993. O cenário jubilava de luz, mais do que nunca. Na escadaria perfilavam-se alguns “charlots” (bailarinos). A orquestra atacou os primeiros acordes de “Luzes da Ribalta”, um dos mais famosos filmes de Chaplin, e onde ela se estrearia com uma única fala: “Miss Hallsobs saiu!”. Ei-la que aparece franzina, frágil, mimando a comoção de estar entre homenzinhos de calças largas, bengala e chapéu de coco. Dois pontos simétricos, abaixo de cada um dos seus olhos, dão um jeito único de Pierrot. Abraça-me e num divertido portunhol diz-me “Feliz Natal e Feliz Aniversário!”
Senhora de uma simplicidade desarmante já na véspera havia surpreendido a equipa ao chegar ao hotel Ritz (onde ficavam hospedadas todas as estrelas que vinham ao programa) e ao ver a suite que lhe havia sido destinada: “se eu soubesse que era tão grande, tinha convidado os meus amigos e dava aqui uma festa!”. Depois quis experimentar a roupa que havia trazido para o programa, para que ali lhe dessemos a nossa opinião. Logo se improvisou um mini-desfile coroado de gargalhadas e dichotes. Ganhou o preto longo com casaqueta pérola.
Habituada que estava a fazer dez quilómetros a pé, por dia, na manhã seguinte não dispensou um longo passeio. Andou por São Pedro de Alcântara, para no miradouro encher os olhos de Lisboa, desceu ao Rossio e continuou até ao Terreiro do Paço. Imagine a esbodegação de quantos a acompanhavam. Houve tempo ainda para a voltinha da praxe: Torre, Jerónimos e Centro Cultural e de Belém não saiu sem provar os tradicionais pastéis folhados.
A conversa em estúdio seria centrada na figura de seu pai: “o maior actor e realizador do Mundo!”. Vinha a propósito já que foi no Natal que Charlie Chaplin morreu: “Foi como que uma vingança poética! O meu pai detestava o Natal! Lá em casa havia sempre uma festa enorme, com a árvore e montes de presentes… só ele não se deixava contagiar por tamanha alegria. Recolhia-se na biblioteca e ali ficava horas a fio, sempre com um livro deprimente nas mãos. Mesmo assim nunca deixávamos que nos estragasse o Natal. Até aquele de 1977!”
Por certo era aversão de pirralho. “Não tenha dúvidas disso! Quando dávamos mostras do nosso contentamento ao receber esta ou aquela prenda, fazia sempre questão de frisar que era uma festa quando tinha de presente uma laranja! Recordava assim a abissal pobreza em que vivia com a sua família!”.
Brilho maior nos olhos só lhe notei quando quis saber de sua mãe (Oona O´Neill) . “A minha mãe era a mulher mais extraordinária!… sinto terrivelmente a sua falta. Ela conheceu o meu pai quando tinha dezassete anos. E ele estava com cinquenta e três. Casaram e todos disseram: ele é um velho e ela uma adolescente, linda mas tonta! Como as pessoas podem ser injustas! Mentalmente não havia diferença entre eles. Ela era a sua melhor crítica. Tudo o que o meu pai escrevia, tudo em que trabalhava, ele apresentava-lhe primeiro. Se ela não gostasse de alguma coisa, ele quase enlouquecia. Batia com as portas…desaparecia…mas acabava sempre por mudar o que não estaria bem. A minha mãe era tão esperta…tão inteligente…podia estar o resto do dia a falar consigo sobre ela! Era o meu ídolo! Sabe, morreu com o coração despedaçado. Sempre partilharam tudo e, de repente (tinha ela cinquenta e dois anos e ele oitenta e oito), o meu pai morreu! Creio que ela nunca lhe perdoou isso! Teve um desgosto enorme e faleceu em 1991. Nunca mais voltou a ser feliz, embora o tivesse tentado. Era uma mulher muito combativa, procurou apaixonar-se de novo…chegou a ter outro namorado…mas sentia demasiado a sua falta!. Aliás, todos o sentimos!”.
Talvez Geraldine tenha amaciado um pouco essa saudade quando contracenou com Robert Downey Jr. no filme que Richard Attenbourought fez sobre o seu pai: “Ah! Isso foi absolutamente fantástico! É fácil dizer: vamos fazer um filme sobre Charlie Chaplin; difícil é encontrar o actor para interpretar o papel. Robert Downey Jr. fê-lo maravilhosamente. Conheci-o no primeiro dia de trabalho. No filme, eu faço o papel de minha avó. Estava muito nervosa…o sol batia-me nos olhos… foi quando vi um vulto. Ele voltou-se … veio direito a mim. Foi então que alguém lhe disse: esta é a Geraldine Chaplin. Abraçou-me. E de repente percebi que tremíamos. Era como um sonho freudiano: eu tinha o meu pai, como um jovem, nos meus braços. A custo dominámos a emoção. Foi preciso um de nós dizer: bom, vamos ao trabalho!”. E que fascínio esse do “faz de conta”. O cinema há muito que é uma paixão e isso mesmo entendeu Chaplin, se bem que inicialmente tivesse confundido o desejo da sua filha com um simples capricho.
“É verdade. O meu pai era contra tudo aquilo que lhe parecesse um capricho. Ele achou que a minha carreira de actriz não passava disso. E a ser-lhe sincera, talvez que, inicialmente, o tivesse sido. O que ele não esperava era que eu me apaixonasse pelo cinema. E foi isso que aconteceu! O cinema tornou-se o centro da minha vida. A partir desse momento, o meu pai apoiou-me sempre com demasiada generosidade. Inicialmente, ele via todos os meus filmes. Eu esperava dele uma crítica construtiva e por isso perguntava-lhe: ‘pai, o que fiz de mal?’ A sua resposta era sempre a mesma: ‘és a melhor actriz do filme. És espectacular! Não mudes nada!’ Comigo, ele foi sempre um pai”.
Por ser Chaplin, tudo na sua vida terá sido mais fácil. Já na escola, conseguia que a melhor aluna a deixasse copiar nos testes. Em troca, teria só de a apresentar ao pai. “Eu sou e serei sempre a filha de Charlie Chaplin! No cinema, nunca houve quem dissesse: ela está aqui por ser filha de quem é. Queriam sempre é que eu fosse boa, até porque muitas dessas pessoas já antes haviam trabalhado com o meu pai e diziam: ‘és a filha do Charlie! Vamos…mostra-lhes como é!’ Tenho vivido sempre como que num casulo de amor e ternura. Não seria, por isso, justo pensar que o que consegui na minha carreira foi apenas à minha custa. Eu adoro essa…essa sombra!”.
Só faltava o brinde com Porto, como fazíamos sempre a rematar cada uma das conversas no programa (aliás, tal gesto fez com que eu, mais tarde, fosse entronizado pela Confraria do Vinho do Porto). Porto era a bebida preferida de Charlie Chaplin. Bebia-o sempre, mesmo vivendo na Califórnia. E se alguém comentava ser essa uma faceta sua muito britânica, levava logo emenda: “este é um lado meu, muito português!”.
Brindámos, celebrando, assim, aquele momento, que mantenho, passados que são vinte anos, como um dos momentos de glória da minha vida!
Apesar de já ter visto o programa, foi muito bom relembrar. Ficamos a conhecer um pouco mais da vida desse grande Senhor dos filmes mudos. Os meus fins de semana de quando era criança foram passados em grande alegria e gargalhadas junto com o meu querido pai que já não está entre nós, vendo o ator magnifico que era Charlie Chaplin. O meu querido pai adorava vê-lo e eu aprendi a gostar também boas lembranças que tenho desse tempo. Parabéns e obrigada querido Manuel por nos ter dado este belo presente.
Não me perguntes porquê, mas hoje as saudades falaram alto.
As lágrimas vim enxugá-las aqui. Em boa hora .
Que boas são as viagens pelas tuas memórias.
Que bom que é ter o privilégio de quando em vez cruzar o meu pequeno almoço com o teu café.
Que bom que é, ter o privilégio, de puder dizer que gosto de ti.
Que bom que é, ter o privilégio de paulatinamente, em cada linha lida, beber um pouquinho mais de ti.
Não te envio um beijo, porque sei o quanto mais gosta de um abraço….
MFNeto
Querida Maria Fernanda
Que bom que é saber que gostas de mim. Também gosto de ti.
Beijo
Que texto delicioso! Obrigada por lhes dar vida 🙂
Subscrevo as palavras de Eliane Brálio, sobre as suas qualidades, Manuel Luís.
Quanto mais vejo os seus programas e melhor o conheço, mais Gosto de si e o admiro.
Manuel, acompanho a sua carreira há já vários anos, sempre senti uma certa admiração por si, pelo seu humor ligeiro antigamente quando trabalhava com a Teresa, e agora com o passar dos anos e a experiência normal de quem já passou por muitas e muitas coisas, você conseguiu dar ao seu trabalho um gostinho agridoce e picante no que faz o que nos dá realmente um prazer imenso em assistir tudo o que você faz. Este programa que faz com a Cristina, tão terra a terra, as suas entrevistas a personalidades portuguesas, demonstra o conhecimento que tem da alma humana, e agora este blog, que com a sua maneira tão doce e intensa ao mesmo tempo de escrever faz-nos sentir em tempo real em todas as situações que você aqui descreve. Que poso mais dizer? O mesmo que todas as pessoas que lhe admiram e gostam de si: Continue assim, com esta paixão pelas pessoas, pois só que tem paixão por pessoas é que pode fazer um trabalho como você o faz, e continue nos tocando com seu bom humor, com seu carinho e palavras inteligentes ditas sempre na altura certa. Um beijo.
E que posso eu dizer-lhe Eliane senão agradecer as suas palavras tão amáveis. Um beijo
Gostei imenso do texto. Fiquei com pena de não ter visto o programa…
Felizmente as novas tecnologias são de uma qualidade impressionante, e permitem-me voltar atrás no tempo.
Nunca comentei aqui no seu blog apesar de ler todos os posts mas este não podia deixar passar em branco. A primeira vez que vi o filme “Chaplin” devia ter uns 6/7 anos, ainda em VHS e na única televisão que havia lá em casa. Basicamente fui obrigada. Não compreendia o porquê dos meus pais preferirem ver aquilo em vez de me deixar ver desenhos animados. Lembro-me do meu pai dizer quando estava a comprar o filme: “é sobre o melhor actor do mundo”. Não muito anos depois a minha curiosidade despertou para ver o filme. Talvez já com os meus 10 anos e porque sempre fui muito curiosa o que me levava a ler muito e sobre tudo, decidi ver o filme. A partir daí vi-o dezenas de vezes, sem exagero. Tudo me fascinava. Hoje em dia o leitor de VHS já não funciona mas consegui encontrar o filme. Um dia destes vou voltar a vê-lo outra e outra vez. Porque cada vez que se lê ou vê algo sobre Charlie Chaplin sente-se a verdadeira magia do cinema.
Aprendo sempre algo com o Manuel Luis obrigada.
Adorei… Não vi o programa, mas através da sua escrita quase que consigo visualiza-lo… Muitos parabéns e obrigada por este momento!