Nunca me esquecerei da conversa que tive com Sir Richard Attenborough. Lembro-me de o ter dito aquando do programa “Momentos de Glória”,
redigo-o agora, vinte e um anos depois. Serviu a Vida defendendo tudo em que acreditava e usando particularmente o cinema, essa “arte mágica”. E fê-lo mais como realizador do que como actor:
“Como actor, sou um intérprete, sigo um guião. Como realizador, posso escolher os temas e expressar os pontos de vista que me parecem mais importantes. Coisas que me possam agredir, como por exemplo a injustiça, ou apaixonar, como a tolerância”.
Dos pais terá herdado a coerência que norteou a sua vida e carreira.
“Foram pessoas muito especiais. Ainda hoje sinto a sua falta. Eram muito liberais. Chegaram a estar envolvidos na Guerra Civil de Espanha, contra Franco. Não se limitavam a falar, agiam. Agiam em relação a tudo aquilo em que acreditavam. Tenho dois irmãos mais novos e estou certo que partilham comigo a opinião de que os nossos pais moldaram e determinaram os nossos sentimentos e atitudes”.
Era hora de me encantar, que as suas falas não erram. Deixei-me ir ao abandono e escutei coisas com que sarei a minha própria mágoa.
“Essa é um excelente pergunta!” – queria eu saber se era fácil manter valores, como a coerência, no mundo do cinema.
“Seria tudo bem mais fácil se eu fizesse filmes como o Exterminador ou Academia de Polícia. Mas eu não quero fazer esse tipo de filmes. Que os interprete como actor, tudo bem, mas há coisas que eu quero dizer e com as quais me preocupo profundamente. Esta minha forma de trabalhar, por vezes, implica longos interregnos. Os meus filmes são custosos de preparar e de obter financiamento”.
Veja-se o caso de “Gandhi”, talvez o mais celebrado dos seus trabalhos, a ponto de haver conquistado nove óscares. Ninguém queria arriscar. Depois de ter explicado “toda aquela história maravilhosa” e o que propunha a fazer, Richard Attenborought ouviu da boca de um director de uma das maiores empresas cinematográficas dos Estados Unidos: “Mas quem é que acha que está interessado na história de um homem pequeno e escuro, embrulhado num lençol e com um pau de feijoeiro na mão?”.
“É difícil ter de enfrentar e vencer atitudes tão terríveis como esta!”
Em momento algum da nossa conversa lhe notei ressentimento. Não era homem de se deixar abater. Os seus projectos eram alimentados pelo coração e por isso os defendia “com unhas e dentes”, nem que levassem, como “Gandhi”, vinte anos a preparar. E não se pense que neste ou noutro trabalho seu tenha havido concessões. Bem tentei apanhá-lo em contradição, evocando cenas de grande aparato visual, com milhares de figurantes ao que ele me respondeu prontamente:
“Não é possível compreendermos a Índia se não retratarmos Gandhi no meio de milhões de pessoas. As multidões que existem na Índia fazem parte da vida de Gandhi, da mesma forma que as massas de negros existentes na África do Sul fazem parte das vidas de Stephen Biko e de Donald Woods (aqui numa referência ao seu filme “Grita Liberdade” e onde o direito à liberdade era o tema central). Não vejo essas cenas como cedências ou concessões”.
Já “Shadowlands”, mais um dos seus trabalhos enquanto realizador, era completamente diferente. O que lhe faltava em aparato visual sobrava em interioridade e emoção:
“É dos meus filmes mais profundos e emocionais. Li o guião numa sexta-feira à noite, gravei a música para um filme sobre Charlie Chaplin no dia seguinte. Anthony Hopkins veio ouvir a música e dei-lhe a ler o guião. Quando cheguei a casa tinha um recado dele para lhe telefonar. Falei-lhe nesse mesmo dia e, foi quando ele me disse ter tido de pousar o guião por três vezes, de tão comovido que estava com a história. Perguntei-lhe, então, se estava interessado no papel, ao que ele me respondeu ser capaz de matar qualquer outro que se interpusesse entre si e o filme. Isto passou-se num sábado à noite e na terça-feira seguinte eu tinha vinte milhões de dólares para fazer o filme. Nunca antes me tinha acontecido algo de semelhante”.
O filme começaria a ser exibido entre nós dali a algumas semanas pelo que poderíamos esperar, mas quis que fosse ele a falar dele, e em boa hora o fiz, concedendo-nos o privilégio de comungarmos da sua comoção:
“O filme diz que a Vida, o Amor e a relação entre as pessoas são coisas maravilhosas. Para que a Vida seja gozada plenamente, para experimentarmos todo o êxtase, não podemos querer viver apenas as alegrias. Se nos tornarmos vulneráveis, se permitirmos que as emoções venham ao nosso encontro, então temos de estar preparados para viver a dor, até mesmo a tragédia”.
Lembro-me do silêncio no estúdio e da tradutora que, através do meu auricular, tudo ia botando em português entre fungadelas e exclamações do género: “que bonito!”.
E era realmente, como bonito foi saber que o seu cachet, como convidado do programa, havia sido doado. Fê-lo a pensar nos muito jovens ingleses, com talento, que por falta de dinheiro não têm hipóteses de frequentar estudos de arte dramática.
“Os meus pais não tiveram dinheiro suficiente para me enviar para a Academia Real de Artes Dramáticas, pelo que tive de ganhar uma bolsa de estudos. Todos os anos entre 1000 a 1500 jovens concorrem às bolsas de estudos da Academia, mas apenas existem trinta vagas”.
Richard Attenborough foi por muitos anos presidente da Academia Real e uma das suas maiores preocupações foi estabelecer, de facto, um certo numero de bolsas de estudo para que jovens, potenciais actores e actrizes, sem possibilidades financeiras não deixassem, por isso, de estudar teatro.
“O teatro é dos bens mais preciosos do meu país. É alimento para a alma e quero ter a certeza de que ele nunca faltará!”.
Lá fora a noite ia descendo muda e calma. Richard Attenborough sairia do estúdio, após a gravação do programa, não sem antes cumprimentar, quantos ali eram, um por um, mostrando-se assim maior. Eu, ali me fiquei, procurando o aconchego do silêncio. Gosto de estúdios vazios, já definhada a função. Não sabia o que em mim chorava, mas uma coisa havia aprendido: os verdadeiros momentos de glória são estes em que aprendemos a valorar os bons sentimentos e as emoções.
Boa noite Manuel Luís.Bonito texto.Bonito Senhor.Bonito tambem o Manuel Luís por respirar arte. No dança com as estrelas ,mesmo com medo de falhar arriscou.Foi bonito de se ver.Parabens.Muito obrigada .Desta vez nao lhe dou só um abraço.Dou~lhe muitos beijinhos.Uma noite descansada.Gertrudes