Viagem ao (meu) passado!

Quando deixei Coimbra aos dezassete e regressei à Lisboa onde nasci ainda se desciam uns dez degraus para franquearmos as pesadas portas de Santa Cruz. O rebaixamento da Praça dita Oito de Maio, por ter sido nesse dia mas de 1834 que as tropas liberais do Duque da Terceira entraram na cidade, se bem que também seja popularmente conhecida por Largo de Sansão por ali ter existido uma fonte invocando o bíblico herói, efectivar-se-ia anos mais tarde, permitindo que a entrada da igreja ficasse a bem dizer ao nível do pavimento. A fachada de quinhentos, se bem que na origem fosse românica tal a antiguidade do antigo Mosteiro, em pedra calcária de Ançã, ganhou assim uma maior majestosidade independentemente do que se perdeu da estatuária que outrora ocupara todos os seus nichos.

Lembro-me de ali ir com a avó Palmira à missa dos Domingos, de me maravilhar com os azulejos azuis e brancos, soube já adulto serem do século XVIII, que vestem grande parte da sua nave única com cenas da Bíblia, e de me empolgar sabendo que ali eram tumulados Afonso, o primeiro dos nossos reis e seu filho Sancho, imortalizados em esculturas jacentes de Nicolau Chanterenne, também ele autor do púlpito magnificamente rendilhado a pedra, e onde o senhor prior perorava homílias ameaçadoras, isto no entendimento de uma criança que nunca compreendeu porque a existir Deus teria ele de ser castigador, tampouco essa de que para ganharmos o reino dos Céus teríamos que aqui penar. Deslumbravam-me as casulas adamascadas pelos seus finos bordados a ouro e a teatralidade de toda a celebração, completamente alheado da demais assembleia que a seguia entre rezas e benzeduras, debitando latim em uníssono, tenho que a maioria, humilde e pouco ou nada letrada, sem perceber pêva.

Levei mais de quarenta anos para agora a Santa Cruz voltar. Dá pena ver o estado degradado do seu Claustro do Silêncio, mais a mais sabendo que já foi de muita fama, mas muito do que ainda se abre ao olhar do visitante, como por exemplo o Altar Mor, o cadeiral do Coro Alto e a sacristia, leva-nos a viajar no tempo e a imaginar Santa Cruz enquanto grande centro de espiritualidade e de sabedoria e onde foram cónegos regrantes nomes como Santo António e São Teotónio.

6 comentários a “Viagem ao (meu) passado!

  1. Maria Sousa

    Boa tarde Manuel.

    Adorei as imagens, Portugal tem um património cultural fantástico que deve continuar a ser preservado.
    Existe um Sr. Manuel Goucha que nos divulga estas imagens lindas que me faz sonhar em um dia também poder ir a esses locais.
    Continuação de todos os sucessos que deseja alcançar.
    Beijo
    Maria

    Responder
  2. Anabela Bacelo

    Boa tarde Sr. Goucha,

    Obrigada pelas suas partilhas. Textos muito bem escritos, reveladores de grande sensibilidade, assim como as fotos que os acompanham.

    Cumprimentos

    Responder
  3. maria silva

    Manuel Luís, mto obgda pela publicação e divulgação da nossa tão desprezada cultura. Só homens e mulheres com a essência do ML para nos alertarem para tão grande desperdício. Bem haja!
    Por favor não nos deixe tanto tempo sem notícias… São sempre uma alegria.
    Força para o “Manel e Maria” que são lindos e ambos cheios de charme e classe. O charme não se compra, é essência, ou se tem ou não tem e vocês foram dotados dela. Muito elegantes os dois.Parabéns e um abraço.

    Responder
  4. Maria José G. V. de Sousa

    Grande maravilha. Adoro tudo desde as fotos ao texto com toda a explicação e bem pormenorizado. É realmente, muito triste a degradação de Monumentos tão belos. Dói-me o coração. Já foi tempo, Manel, em que era feito tudo para a preservação destas obras de arte. Agora pouco ou nada se faz. Obrigada. Beijinhos. Maria J. Sirgado

    Responder
  5. Bruna

    Que texto tão bem redigido, que delicadeza na escrita, e que Português tão bem articulado e muito bem escrito, sem acordos ortográficos, que também, não faço uso deles, lembra-me a escrita do Eça, e também retratou o Deus que dissem ser castigador, não creio nesse Deus, porque de facto não é… tal como o Manuel também ando numa busca incessante atrás dele. De qualquer forma, adorei a descrição. Tudo de Bom para si, porque Deus existe no Bem que fazemos aos outros. E tudo é evolução.

    Responder

Responder a Anabela Bacelo Cancelar resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *