Na casa de Tormes

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Em andando por Santa Cruz do Douro, como eu andei, e quando se gosta de artes e letras, é obrigatória uma ida a Tormes. Eça de Queiroz não terá ali vivido, como muitos possam pensar, mas esteve na casa e na propriedade por algumas vezes, a primeira das quais em 1892, quando sua mulher Emília de Castro a herdou por falecimento dos pais, os condes de Resende. Tanto um como outro não conheciam a casa de Vila Nova, nem a propriedade, e apenas em Paris teriam ouvido falar delas.

É Eça que vem a Portugal, juntamente com a cunhada Benedita, para tomar conhecimento do que haviam herdado, subindo a serra a cavalo a partir da estação de caminho de ferro, hoje em dia, Tormes-Aregos. O escritor logo se terá deixado encantar pelo percurso até à quinta: “Santa Cruz é inteiramente de outra natureza. É extremamente belo. O caminho íngreme e alpestre  da estação até à quinta é simplesmente maravilhoso. Vales lindíssimos, carvalheiras e soutos de castanheiros seculares, quedas de água, pomares, flores, tudo há naquele bendito monte”. Já o mesmo não terá dito da casa, ao entrar no pátio, e por certo também devido ao seu estado de abandono. “Enquanto à casa é feia; e à fachada mesmo pode-se aplicar, sem injustiça, a designação de hedionda. Tem um arco enorme, e por baixo dele duas escadarias paralelas que são de um mau gosto incomparável.(…). Na carta que então enviou à sua mulher (de onde retirei quanto aqui se reproduz entre aspas) Eça não deixa, no entanto, de reforçar a beleza do local: “A quinta está situada num alto, num sítio soberbo, que abrange léguas de horizonte, e sempre interessante(…) Logo adiante da casa, o monte desce até ao Douro; logo por trás da casa, o monte sobe até aos cimos onde há uma ermida. O que sobe e o que desce é tudo admirável de vegetação, de verdura, de águas, de sombras, de belas vistas…”. Não se estranhe por isso que tudo quanto viu e reviu, das vezes que voltou, lhe tenha servido de inspiração para algumas obras, como o conto “Civilização” e o romance “A Cidade e as Serras”.

Na casa de Tormes viveu sim Maria Eça de Queiroz, que a foi enchendo de recordações do escritor, seu pai, desde objectos de serventia pessoal a móveis e outras coisas ligadas à actividade da criação, como a secretária onde escrevia de pé, escritos diversos e correspondência. Mais tarde seria o neto e sua mulher, que ainda hoje ali vive, a manterem toda esta atmosfera tão intimamente ligada ao escritor e que nos arrebata mal franqueamos a porta de entrada.

Eça de Queiroz terá voltado a Tormes em 1895, uma terceira vez três anos depois, sendo que a última foi em 1899, conforme carta dirigida ao Conde Arnoso “(…) parei nas serranias do Douro, em Santa Cruz, onde fiquei dois dias a descansar (quase devia dizer a convalescer) do tremendíssimo almoço com que o meu rendeiro me honrou, logo na manhã da chegada, às dez horas de uma doce manhã! O prato mais ligeiro era um anho assado. Na cabidela entrava toda uma capoeira. Sobre a mesa, em vez de uma garrafa, pousava um pipo! Honrei o festim: depois foram os dois dias, os dois lentos dias de cansaço e digestão, sentado numa pedra, debaixo de um castanheiro. Quando, ao cabo de dois dias, senti que já não havia dentro de mim quase nenhum anho e quase nenhuma cabidela – tomei enfim o caminho de Salamanca…”.

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Tormes é hoje sede da Fundação Eça de Queiroz. A casa de finais do século XVI, inícios do século XVII, domina a quinta com cerca de 14 hectares. Ali se produz vinho de boa qualidade que pode ser adquirido na loja da casa/museu.  A casa de Tormes está aberta ao público em geral e a visitas de estudo. São muitas as escolas que ali se dirigem no intuito de viverem de modo mais próximo as ambiências queirozianas, ajudando assim à leitura obrigatória de “A Cidade e as Serras” e a “Ilustre Casa de Ramires”. É também por todo este papel pedagógico de extrema importância, desenvolvido pela Fundação Eça de Queiroz, que não entendo que o subsídio anual de 25.000.00€ (vinte e cinco mil euros por ano, reforço por extenso para se perceber melhor a ridicularia do apoio), atribuído pelo então Ministério da Cultura, lhe tenha sido retirado. Como admitir esta mesquinhez quando sabemos que se mantêm apoios de milhões de euros para as fundações dos compadres da política?! É vergonhoso quando outros interesses se sobrepõem àquele que deveria ser o interesse nacional: o de enriquecer um povo através da sua formação e cultura.


Se puder, não deixe de fazer o caminho de Jacinto (“A Cidade e as Serras”), da estação de Tormes-Aregos até à Casa e Quinta de Tormes, seguindo as indicações do percurso. Pode fazer ao contrário, que “para baixo todos os santos ajudam”.

13 comentários a “Na casa de Tormes

  1. Luisa Fonseca

    Estive a fazer uma visita a Tormes há anos. E como sou uma apaixonada por Eça de Queiroz, não me canso de ler e ouvir tudo que diga respeito a ele e a Tormes.
    Fiquei escandalizada com o corte do subsídio mas não sei porque…. Os descalabros em relação à cultura neste país são tantos que já nada me deveria admirar.
    Obrigada Luís Goucha pela sua descrição. Quem me dera voltar àquele local, quem me dera…

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  2. Maria Emilia Cunha Lopes

    Tudo maravilhoso,obrigada,não me importo de repetir sempre,obrigada pelas paisagens tanto do norte como sul,cada um com a sua beleza,oManel tem mt bom gosto e conta mt bem sem esquecer as histórias de cada sitio k vai é uma pessoa cheia de cultura,continue sempre assim,alegre,descontraido e feliz BJIO

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  3. Carlota Joaquina

    Exmo Senhor Manuel Luís

    Muito obrigada pela partilha , fiquei fascinada com tanta beleza .Brevemente vou até lá .

    Abraço com muita amizade e admiração

    Carlota Joaquina

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