Memórias de um restaurante

Hoje quero contar-lhe a história e as estórias de um dos mais famosos restaurantes do Mundo, este com mais de quatrocentos anos, imagine só!

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Falo-lhe do “Tour d’ Argent”, então a modos que uma hospedaria com os pés no Sena. Seria Henrique, senhor da Polónia e da França, terceiro do nome e último dos Valois, o primeiro dos notáveis a ter ali assento. Ainda o garfo era pouco conhecido, que dizer então do seu uso. “Perdia-se metade do conduto no caminho para a boca”. Agradado pelo que comeu, depressa o rei criou o hábito de ali refeiçoar com os mais chegados da sua corte, fazendo com que o “Tour d´Argent” virasse moda.

As “carnes de pluma” eram já a sua mais dilecta especialidade. Diga-se, por exemplo, que o prato predilecto do cardeal Richelieu, permitam-me o pulo no tempo, era “perdiz ao açúcar”. Era este chamado de “sal indiano” e tido como especiaria de grande careza e raridade.
Se é verdade que o aparecimento do café (já agora lembro-lhe que terá sido o embaixador do sultão Mohamed IV o primeiro a oferecer os seus grãos à corte de Luís XIV) dividiu a sociedade parisiense, não deixa de ter a sua relevância o facto de ser “de bom tom” bebê-lo no “Tour d´Argent”. Aquilo era “ouro negro”. Já a Marquesa de Sévigné tinha outra paixão: a do chocolate.

Por ser caso único de longevidade ao serviço da suprema cozinha francesa, o “Tour d’ Argent” cumpliciou as mais diversas mutações sociais e gastronómicas.

Não tardariam a ser postos em causa os fundamentos da cozinha tradicional. Disso nos dão conta dois jesuítas, em 1739, ao escreverem “As Delicias da Mesa”, preconizando a inevitabilidade de uma cozinha mais refinada, “uma espécie de química”.

São ali advogadas umas quantas regras essenciais à cozinha moderna: “escudam-se os medíocres no abuso das especiarias” ou, ainda, “a arte de um cozinheiro consiste em decompor e fazer digerir as carnes. Em extrair-lhes os nutritivos sucos para depois os misturar com parcimónia para que nenhum domine e todos se façam sentir”. Nascia assim a alta cozinha. Sabe-se, por exemplo, que para oito filetes de linguado Sully, uma entrada para quatro pessoas, eram necessários quinze quilos de peixes vários para se obter um caldo (“fumet”) concentrado que outro fim não teria que o de perfumar aquele outro onde os filetes iriam, posteriormente escalfar, por alguns minutos.

Os ventos da modernidade a todos contagiava. Não havia quem não procurasse a descoberta de um novo ingrediente ou de um acomodamento original.

Do Chile haveria de chegar o morango (“fraise”) pela mão de Frezier (engenheiro militar, botânico e navegador). Os pimenteiros da Conchichina seriam plantados às portas de Paris. A corte logo descobriria o ananás do Suriname. Uma nova receita de frango leva o nome do marechal Villeroi. O molho “béchamel” celebraria o financeiro Luis de Bechameil. Se a duquesa de Berry inventou uma receita de peitinhos de láparo em creme, Madame de Pompadour, favorita de Luís XV, haveria de criar, ou instigar a criação, de uma receita de almôndegas. Conhecia-se já uma vintena de maneiras de cozinhar alcachofras e Luís XVI haveria de consagrar os préstimos da batata.
Há quem exagere e descambe em maneirismos. Numa época de viragem seria de esperar o surgimento de diferentes, até contraditórias, concepções de cozinha. No centro de toda esta evolução, ou revolução, vamos sempre encontrar o “Tour d´Argent” paladino da nova arte de comer e viver.

Não tardaria contudo o ano de 1789. Com a queda da Monarquia, o restaurante cai em desgraça e acaba por ser vendido em leilão. Da cave, sua jóia maior, são pilhados valiosos vinhos de Bordéus, de Champagne, de Clos-Vougeot e de Chambertin, esses que deliciaram toda uma sociedade requintadamente decadente, para mais tarde serem bebidos na Praça de Grève, em honra da República.

Graças a Lecoq, cozinheiro pessoal de Napoleão, o “Tour d´Argent” viria, em parte, a readquirir o seu prestígio, ainda que isso se tenha traduzido numa, digamos que, condescendência gastronómica para com a nova classe dominante. Não deixa de ser sintomático o rebaptismo de certos delicados molhos com nomes de batalhas vitorisosas, como as de Valmy, Magenta e Marengo.

Já vai grandinha a prosa, e ainda assim apresenta-se acanhada para tão lustroso passado. Não devo é esquecer-me de Frederic Delair, proprietário-cozinheiro do “Tour d´Argent” na última década de 1800.

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Se bem que a receita do “canard au sang” tenha feito o seu aparecimento na primeira das cartas, isto é, em 1770, seria Frederic a assegurar a sua celebridade.
Com efeito, não deixaria de cuidar dos mínimos detalhes para que a receita fosse imbatível. Desde a idade do pato à sua alimentação durante os últimos quinze dias de vida, nada era deixado ao acaso. De igual modo tratou da arte de o condimentar, bem como de prensar a sua carcaça e ossos para que fosse recolhido todo o sangue indispensável à perfeita untuosidade do molho. Certo de que a sua obra sobreviveria por si só, tal era a excelência do preparo, Frederic passaria, a partir de 1890, a atribuir um número a cada pato servido. Os costume ainda hoje se mantém.

Em 1921 Hirohito, Imperador do Japão, deliciar-se-ia com o pato número 53.211. Já Isabel II, de Inglaterra, em 1948, aquando da sua lua-de-mel, iria comer o pato número 185.937. A mim, coube-me o 826.770, isto p´ra aí há uns vinte e cinco anos, quando integrava um grupo de jornalistas que ali era a convite das caves Mumm. Na ocasião, conheci o então proprietário Claude Terrail, já o restaurante estava na sua família desde 1911. Lembro-me de lhe ter ouvido: “de todas, o Tour d´Argent, é a minha mais fiel amante”. Tê-lo-á sido ao longo da sua vida, de tal modo se lhe devotou. Cuidadoso nos detalhes, no atendimento, e na liderança de toda uma grande equipa soube receber, em sua casa, os maiores nomes da realeza, da política e das artes. No piso térreo, as fotografias e os respectivos autógrafos não deixam mentir: de Farah Diba a Liz Taylor, de Plácido Domingo a Júlio Iglesias, de Dali a Charlie Chaplin, de Eisenhower a Gromicko, de Orson Welles a Laureen Bacall entre muitos, muitos outros.

Este ano voltei ao “Tour d´Argent” e desta coube-me o pato número 1.128.829. E independentemente da qualidade do que se me apresentou à mesa, foi, uma vez mais, a grandeza das memórias que me arrebatou, como se aquela fosse a hora de todos os caprichos.

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3 comentários a “Memórias de um restaurante

  1. Cátia Joana da Silva Carvalho Santos

    Boa tarde Sr. Manuel Luis Goucha,
    Em primeiro lugar gostava de lhe dar os parabéns pela pessoa que é e pelo grande profissional que é no nosso panorama televisivo. Lembro-me de ser muito pequena e ficar colada a tv a ver o sebastião come tudo e os programas de culinária.
    eu sei que deve ter mais que fazer do que estar a ler a minha carta mas se fosse possível a sua ajuda para uma grande esperança que tenho de poder conhecer alguém da família do meu falecido avô paterno, a única coisa que sabemos é que o meu avô era de Vila Real, Lordelo e que a família tem como apelido Gomes de Carvalho.
    Por coincidência, ou não, hoje dia 26/08/2014, na TVI24, deu no jornal da tarde uma reportagem sobre os emigrantes, e qual o meu espanto que estavam em casa da família carvalho em Lordelo, vila real.
    será que são família do meu avô?
    Não sabemos muitos pormenores sobre a família do meu avô porque ele veio para Lisboa sozinho, para casa dos padrinhos também já falecidos, ainda criança e que nunca mais voltou a terra. Sempre que lhe pedíamos para falar disso ele mudava de conversa e ficava angustiado.
    Será que vocês no vosso programa não nos podiam ajudar?
    Gostava que a minha avó antes de morrer conhecesse a família do marido, já que ela própria não os conhece.

    Um beijinho muito grande.

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  2. Silvia Pedro Silvestre

    Olá Manuel,

    Como sempre que bela estória.
    A possibilidade de degustar num local assim com tanta história é realmente um mento único.
    Quem sabe numa outra vida, eu o poderei fazer.
    Obrigado por me ter dado mais um pouco de cultura e conhecimento nessas suas palavras.

    Um beijinho muito grande.
    Silvia Pedro Silvestre

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