Marília Pêra – O que recordo

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Conversei com Marília Pêra uma única vez em televisão, numa das muitas entrevistas que deu a propósito da sua digressão em Portugal com a peça “Mademoiselle Chanel”, um grande êxito em todos os locais por onde andou, a começar no Brasil onde esteve em cena três anos. Mostrou-se simpática, divertida, com um singular sentido de humor, independentemente de ter repetido, estou certo, pela milésima vez as mesmas histórias e considerações sobre Coco Chanel e o espectáculo. Muitos anos depois vim a saber a sua opinião, através de um livro escrito por si (“Cartas a uma jovem actriz”), que me veio parar às mãos porque me interesso por quem mergulha nas incertezas da alma e muitas vezes toca o divino (os artistas), sobre essas inevitáveis entrevistas repetidas à exaustão sempre que uma digressão em país alheio se inicia ou uma peça ou filme se estreia:

“Sempre me pergunto, depois dessas jornadas repetitivas de entrevistas, porque o artista tem de se submeter a essa regra de falar a mesma coisa um milhão de vezes, a mesma coisa para vários jornalistas diferentes. Porque não fazer uma entrevista colectiva!”. Não é possível um artista, que precisa cuidar da voz como de uma jóia, que precisa de preservar minimamente sua criatividade e sua energia, sentar-se contando a mesma história um milhão de vezes, durante horas, como um velhinho demente, ou pousando para fotos em todos os lugares possíveis do hotel em que está hospedado, ou em restaurantes que fizeram acordos comerciais com a produção, em todos os pontos pitorescos da cidade, em todas as televisões, circos, rádios, em todos os programas de auditório … ”

Importante para Marília Pêra era a actuação em palco, perante um público ávido de a ver e admirar: “Todos esses eventos poderiam ser, de alguma forma divertidos, se estivéssemos de férias, se não houvesse o perigo de a voz, a memória, de a força cênica nos abandonarem irremediavelmente”.

Inteira em palco, entregava-se, noite após noite, à corporizarão da personagem, nunca a dando por adquirida: “Sou daquele tipo de atriz que passa a temporada inteira procurando a profundidade e o frescor de um texto. Nunca acho que esteja pronto, nunca faço o personagem mecânica ou tecnicamente, nunca alcancei a certeza de um trabalho acabado. Sempre estou duvidando e procurando, e isso é uma loucura”.

No bailado clássico encontrou um meio para descobrir o corpo, algo essencial ao seu ofício de actriz: “Creio que não teria conseguido realizar os personagens que interpretei na vida se não tivesse tido como fonte o ballet. Foi fundamental ter consciência do meu corpo, dos meus músculos, da minha respiração, dos meus pés, das minhas mãos”.

Representando soube sempre estar à frente do seu tempo e esse terá sido um dos seus maiores trunfos: “O grande mistério é não se deixar esmagar, competir no bom sentido, se possível sem trair ninguém, principalmente, sem perder a essência da função do intérprete que é ter uma visão à frente do seu tempo, ser criativo, interessante, revelador, contestador, oportuno, engraçado, inteligente, surpreendente, disponível, corajoso, disciplinado. Tudo isso com boa memória e boa voz!”.

Permanentemente insatisfeita, foi através da inquietação e do trabalho que encontrou o sucesso, mesmo sabendo-o efémero: “Dedicação, disciplina e a sensação de jamais me sentir realizada, fizeram de mim o que sou. É não virar busto enquanto se é vivo. E saibamos que o sucesso é efêmero, ele mora perto do fracasso, os dois são quase a mesma coisa. Tudo depende de Deus, do universo, das leis da natureza, da força do desejo, da sorte, do amor. E da perseverança”.

Marília Pêra representou quase até ao fim, no teatro e na televisão, assim é esta profissão dos deuses, permitindo que uma pessoa envelheça exercendo-a, e não se pergunte a um artista porque persiste. É vicio que dá sentido, que dá Vida, até se voltar ao nada.

3 comentários a “Marília Pêra – O que recordo

  1. Margarida Lança

    Grande artista, descanse em paz. Só agora me apercebi que também era cantora. Ouvi-a cantar e fiquei deslumbrada com uma interpretação colossal, a seguir as referências que lhe fizeram:
    Já vi a intensidade de Piaf, a tristeza sombria de Maisa, vi a dramaticidade de Callas o lirismo de Inhana, a voz poderosa de Elizeth e Elis vertendo sangue, vi a insuperável Nana, a intensidade doce de Alaide, a interpretação e a voz trêmula de Bibi.

    Mas jamais vi algo que se equiparasse à interpretação de Marilia Pera, no especial de Roberto Carlos. Já ouvi várias vezes.
    Para o Manuel um abraço.

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  2. Fernanda Silva

    Bem haja Goucha!
    Belo texto, belas palavras!
    Palavras de alguém que eu tanto admiro…e não é por acaso!
    A sua sensibilidade e frontalidade, chegam a comover-me!
    Como eu gostava de um dia conhecê-lo!
    Um beijinho d’uma admiradora!
    Fernanda

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